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Sabedoria acima de Justiça
por
Ven. Thanissaro Bhikkhu
Tanslation into Portuguese: (Info)
Mr. Danilo
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A alguns anos atrás, em um de seus momentos mais inspiradores, The Onion reportou um vídeo publicado por uma seita budista fundamentalista em que o porta-voz da seita fazia ameaças de que ele e seu grupo desencadearia ondas de paz e harmonia pelo mundo, ondas que ninguém poderia deter ou resistir. A reportagem também mencionava que em resposta ao vídeo, o Departamento de Segurança Interna jurou que faria de tudo ao seu alcance para deter as ondas de chegarem na América.

Assim como toda boa sátira, a matéria faz você parar e pensar. Por quê paz e harmonia seriam as piores "ameaças" que poderiam surgir dos fundamentos dos ensinamentos de Buda?

A resposta, penso eu, está no fato de que Buda nunca tentou impor suas ideias de justiça ao mundo em geral. E isso foi muito sábio e perspicaz da sua parte. É fácil perceber como imposição de normas de justiça podem ser uma ameaça para o bem-estar quando essas normas provém de outra pessoa. É mais difícil perceber a ameaça quando essas normas provém de você mesmo.

Buda tinha claras diretrizes para certo e errado, de meios hábeis e inábeis de engajar-se no mundo, mas ele raramente falava sobre justiça. Ao invés disso, ele falava de ações que levariam à harmonia e felicidade real no mundo. E ao invés de explicar suas ideias para harmonia em um contexto de busca por um mundo justo, ele as apresentou no contexto de méritos: Ações que conduzem à felicidade, ambos isentos de culpa, seja na felicidade em si mesma ou na maneira como ela é obtida.

O conceito de mérito é amplamente mal entendido no Ocidente. É frequentemente visto como uma busca egoísta pelo seu próprio bem-estar. Porém, na verdade, as ações que se qualificam como mérito são a resposta preliminar de Buda para uma séries de perguntas que Ele diz jazer na fundação da sabedoria: "O que é hábil? O que é isento de culpa? O que é que, quando eu faço, irá levar ao bem-estar e felicidade à longo prazo?" Se você almeja felicidade por meio dos três tipos de ações meritórias — generosidade, virtude, e o desenvolvimento da prática de bem-querer universal — é difícil enxergar como essa felicidade poderia ser taxada como egoísta. Essas são ações que, através de suas benevolências inerentes, torna a sociedade humana suportável.

E Buda nunca impôs nem mesmo essas ações à ninguém como ordens ou obrigações. Quando perguntado em que ocasião um presente deveria ser dado, ao invés de dizer, "de para os budistas", ele disse, "No momento em que a mente estiver confiante" (SN 3:24). Da mesma maneira é com a virtude: Professores do Dhamma tem frequentemente observado, com aprovação, que os preceitos de Buda não são mandamentos. Eles são regras de prática que as pessoas podem adotar voluntariamente. Quanto a prática de bem-querer universal, é uma questão pessoal que não pode ser imposta à ninguém. Para ser franco, tem que vir voluntariamente do coração. O único "deveria" que jaz por traz dos ensinamentos de Buda sobre mérito é condicional: Se você quer felicidade de verdade, isso é o que você deveria fazer. Não porque o Buda diz para fazer, mas simplesmente porque é assim que causa e efeito funciona no mundo.

Afinal de contas, Buda não reivindicava estar falando por um deus criador ou um divindade protetora. Ele não era um legislador universal. As única leis e normas de equidade que ele formulou foram as regras de conduta para aqueles que escolhiam ordenar na Sangha de bhikkhu e bhikkhuni, onde aqueles que realizam deveres comunais são encarregados de evitar se deixarem levar por qualquer viés proveniente de desejo, aversão, delusão ou medo. Fora isso, Buda falou simplesmente como um perito em como dar um fim ao sofrimento. Sua autoridade provém, não de uma reivindicação de poder, mas da honestidade e eficácia de sua própria procura por uma felicidade imortal.

Isso significa que ele não estava em posição de impor suas ideias à alguém que não as aceitava voluntariamente. E ele não tinha intenção de se colocar em tal posição. O cânone em páli ressalta, que o pedido para que Buda assumisse uma posição de soberania em que ele pudesse governar com justiça sob os outros veio, não de qualquer um de seus seguidores, mas de Māra (SN 4:20). Há muitas razões pelas quais ele recusou o pedido de Māra — e porque ele aconselhou outros a recusar tal pedido também.

Para começar, mesmo que você tente governar justamente, sempre haverá pessoas insatisfeitas com seu governo. Como Buda comentou com Māra, mesmo duas montanhas de barras sólidas de ouro não seriam capazes de satisfazer as necessidades de qualquer pessoa. Não importa o quão bem riquezas e oportunidades fossem distribuídas sob seu governo, sempre haveria aqueles que estão insatisfeitos com suas porções. Como resultado, sempre haveria aqueles com os quais você teria que lutar a fim de manter seu poder. E, tentando manter o poder, você inevitavelmente desenvolve uma atitude onde os fins justificam os meios. Tais meios podem envolver violência e punições, levando você cada vez mais distante de estar apto de admitir a verdade, ou mesmo de querer conhecê-la (AN 3:70). Mesmo o mero fato de estar em posição de poder significa que você está cercado de sicofantas e manipuladores, pessoas determinadas a prevenir que você saiba a verdade sobre elas (MN 90). No que diz respeito a posição do Buda, poderes políticos são tão perigosos que ele orientou seus monges à evitar, se possível, se envolver com um governante - um dos perigos sendo que se o governante formulasse um política desastrosa, o monge poderia ser culpabilizado. (Pc 83).

Outra razão para a relutância de Buda em tentar impor suas ideias de justiça aos outros era sua percepção de que o esforço em promover justiça como um fim absoluto seria contra o propósito mais importante de seus ensinamentos: o fim do sofrimento e o realizar da felicidade verdadeira e isenta de culpa. Ele nunca tentou impedir governantes de impor justiça em seus reinos, mas ele também nunca usou o Dhamma para justificar uma teoria de justiça. Também nunca usou o ensinamento de kamma passado para justificar maus tratos ao fraco ou desafortunado: Independente de qualquer kamma passado, se você maltratá-lo, o kamma do maltrato se torna seu. Apenas porque há pessoas atualmente fracas ou pobres não significa que seus kamma requerem que permaneçam fracas e pobres. Não há maneira de saber, como expectador externo, qual outro potencial kammico está pronto para brotar de seu passado.

Ao mesmo tempo, todavia, Buda nunca encorajou seus seguidores a buscar retribuição, i.e., punição por ações más. O conflito entre justiça retributiva e felicidade verdadeira é bem ilustrado na famosa história de Aṅgulimāla (MN 86). Aṅgulimāla era um bandido que havia matado muitas pessoas — o cânone menciona no mínimo 100; Os comentários, 999 — e ele usava uma grinalda (māla) feita de seus dedos (aṅguli). Ainda assim, depois do encontro com Buda, seu coração sofreu uma mudança tão brusca que ele abandonou o temperamento violento, despertou senso de compaixão, e eventualmente se tornou arahant.

Essa passagem é popular, e a maioria de nós gosta de se identificar com Aṅgulimāla: Se uma pessoa com sua história pode despertar, então há esperança para todos nós. Mas ao identificar-se com ele, nos esquecemos dos sentimentos daqueles que ele aterrorizou e dos parentes das pessoas que matou. E depois de tudo, ele literalmente abandonou a vida de assassinatos. É fácil de entender, então, como a história nos conta, que quando Aṅgulimāla estava indo esmolar alimento depois de seu despertar, as pessoas jogavam pedras nele, e ao retornar, "sua cabeça com ferida aberta e gotejando sangue, sua tigela quebrada e sua túnica rasgada em pedaços". Buda o reassegurava de que seus ferimentos não eram nada comparado com o sofrimento que ele passaria se não tivesse despertado. E se as pessoas indignadas tivessem saciado plenamente a sede por justiça impelindo o sofrimento que elas achavam que Aṅgulimāla merecia, ele não teria a chance de alcançar o despertar de maneira nenhuma. Ele foi um caso em que o fim do sofrimento teve precedência sob a justiça em qualquer senso comum da palavra.

O caso de Aṅgulimāla ilustra um princípio geral indicado em AN 3.101: Se os mecanismos de kamma requeressem estritamente uma justiça olho por olho — com você tendo que passar pelas mesmas consequências de cada ato que você infligiu aos outros — não seria possível que alguém alcançasse o fim do sofrimento. A razão pela qual podemos atingir o despertar é porque mesmo embora ações de um certo tipo deem tipos de resultados correspondentes, a intensidade de como tal resultado é sentido é determinado, não apenas pela ação original, mas também — e mais importante — por nosso estado mental quando o resultado surgi. Se você tiver desenvolvido bem-querer ilimitado e equanimidade, e tiver treinado bem em virtude, discernimento, e a habilidade de não se deixar ser subjugado nem pelo prazer nem pelo dor, então quando os resultados de más ações passadas surgir, você dificilmente será afetado de qualquer maneira. Se você não tiver treinado dessa maneira, então até mesmo os resultados de uma frívola ação errônea pode te levar ao inferno.

Buda ilustra esse princípio com três símiles. O primeiro é o mais fácil de digerir: Os resultados de ações prejudiciais do passado são como um longo cristal de sal. Uma mente sem treino é como um pequeno copo com água; uma mente bem treinada, como água em um grande e claro lago. Se você colocar o sal na água do copo, você não pode beber pois é muito salgado. Mas se você coloca sal no lago, você ainda consegue beber a água pois há muita mais água e é bem limpa. No geral, uma imagem atrativa.

Os outros dois símiles, todavia, salienta um ponto em que o princípio que estão ilustrando vai contra algumas ideias muito básicas sobre aquilo que é justo. Em um símile, a ação ruim é como o roubo de dinheiro; no outro, como o roubo de um bode. Em ambos símiles, a mente sem treino é como uma pessoa pobre que é severamente punida por cada um desses dois crimes, enquanto que a mente bem treinada é como uma pessoa rica que não recebe punição por nenhum dos dois roubos. Nesses casos, as imagens são menos atrativas, mas elas ilustram o ponto que, para kamma funcionar de uma maneira que compense o treinamento da mente para dar um fim ao sofrimento, não poderia funcionar de uma maneira que garantisse justiça. Se insistíssemos em um sistema de kamma que garantisse justiça, o caminho para libertação do sofrimento não seria possível.

ESSA SÉRIE DE VALORES,que da preferência à felicidade acima da justiça quando há um conflito entre os dois, não combina muito bem com muitos budistas ocidentais. "Não é a justiça um propósito maior e mais nobre do que a felicidade?" nós pensamos. A resposta curta para essa questão se refere à compaixão de Buda: Vendo que todos nós erramos no passado, sua compaixão se estende tanto para os malfeitores quanto para os prejudicados. Por essa razão, ele ensinou o caminho para o fim do sofrimento independente de tal sofrimento ser “merecido” ou não.

Para a resposta longa, todavia, temos que nos virar e olhar para nós mesmos.

Muitos de nós nascidos e educados no Ocidente, mesmo que tenhamos rejeitado o monoteísmo que influencia nossa cultura, tendemos manter a ideia de que normas objetivas de justiça deveria prevalecer sob todos. Quando inconformados em relação à uma injustiça, nós frequentemente expressamos nossas opiniões com intenção de corrigir o que está errado, não como sugestões do curso de ação mais sábio à se tomar, mas como normas objetivas designando a obrigação de como cada um deve se portar. Tendemos a não perceber, no entanto, que a própria ideia de que essas normas são objetivas e universais faz sentido apenas no contexto de uma visão de mundo monoteísta: uma em que o universo foi criado em um momento específico no tempo — digamos, pelo deus abraâmico ou pelo motor imóvel de Aristóteles — com um propósito específico. Em outras palavras, mantemos a ideia de justiça objetiva mesmo tendo abandonado a visão de mundo que embasa essa ideia e à torna válida.

Por exemplo, justiça retributiva — a justiça que procura consertar erros passados punindo o primeiro malfeitor e/ou aqueles que responderam excessivamente ao primeiro erro — demanda um começo específico no tempo em que nós possamos determinar quem atirou a primeira pedra e constatar quem fez o que depois da primeira infração.

Justiça restaurativa — a justiça que procura restaurar a situação ao seu estado apropriado antes da primeira pedra ter sido jogada — requer não apenas um ponto inicial no tempo, mas também que esse ponto inicial seja um bom lugar para ser restaurado.

Justiça distributiva — a justiça que procura determinar quem deveria ter posse do que, e como recursos e oportunidades deveriam ser redistribuídos daqueles que detém suas posses para aqueles que “deveriam” deter essas posses — requer uma fonte comum, acima e além de indivíduos, da qual essas coisas provém e que elucida o propósito pelo qual elas servem.

Apenas quando essas respectivas condições forem atendidas, é possível essas formas de justiça serem objetivas e vinculadas à todos. Na visão de mundo de Buda, todavia, nenhuma dessas condições são sustentáveis. Pessoas tem tentado importar ideias ocidentais de justiça objetiva nos ensinamentos de Buda — alguns até sugerem que isso será uma das grandes contribuições ocidentais ao Budismo, preenchendo uma séria lacuna — mas não tem como essas ideias serem incutidas à força no Dhamma sem causar sério dano à visão de mundo budista. Esse fato, em si mesmo, impele muitas pessoas à descartar a visão de mundo budista e a substituí-la por algo próximo a nossa própria visão prévia. Mas uma análise cuidadosa daquela visão de mundo, e das consequências que Buda elucida dela, mostra que seus ensinamentos sobre como encontrar harmonia social sem recorrer à normas objetivas de justiça tem muito à oferecer.

BUDA DESENVOLVEU SUA VISÃO DE MUNDO de três conhecimentos que ele ganhou na noite de seu despertar.

No primeiro conhecimento, ele viu suas próprias vidas passadas, milhares e milhares de eras no passado, repetidamente acendendo e decaindo por muitos níveis de ser e através da evolução e colapso de muitos universos. Como ele diz posteriormente, o ponto inicial do processo — chamado samsāra, "vagando" — era inconcebível. Não apenas desconhecido, inconcebível.

No segundo conhecimento, ele viu que o processo de morte e renascimento se aplicam à todos seres no universo, e — por tanto tempo já transcorrido — seria difícil encontrar alguém que nunca tenha sido sua mãe, pai, irmão, irmã, filho, ou filha no curso desse longo, longo tempo. Ele também viu que o processo era alimentado por todas as ações de todos os seres, e que isso não serve aos interesses de nenhum ser em particular. Conforme está sintetizado no Dhamma, "Não há ninguém encarregado" (MN 82). Isso significa que o universo não serve à um propósito claro ou singular. E mais, tem o potencial de continuar sem fim. Diference de um universo monoteísta, com seu criador promovendo um julgamento final, samsāra não oferece perspectiva de equidade ou desfecho justo — ou mesmo, além de nibbāna, qualquer desfecho de qualquer forma.

No contexto desses três conhecimentos, é difícil considerar a busca por justiça como um bem absoluto, por três principais razões.

• À começar com, dada a lição do cristal de sal — que as pessoas sofrem mais de seus estados mentais no presente do que dos resultados de ações passadas transcorridas no mundo externo — não importa quanta justiça você tente trazer ao mundo, pessoas continuarão sofrendo e estarão insatisfeitas enquanto suas mentes não forem treinadas nas qualidades que as tornam imunes ao sofrimento. Isso foi a razão pela qual Buda, ao rejeitar o pedido de Māra, fez o comentário sobre as duas montanhas de ouro sólido. Não apenas as pessoas sofrem quando suas mentes são destreinadas, as qualidades da mente destreinada também a leva a destruir qualquer sistema de justiça que possa ser estabelecido no mundo. Enquanto a mente das pessoas não forem treinadas, justiça não resolveria o problema do sofrimento delas, nem seria capaz de perdurar. Esse fato se mantém independente de se você adota a visão de mundo de Buda ou uma visão mais contemporânea de um cosmo com uma vasta dimensão de tempo e sem sinal de fim à vista.

• Segundo, como mencionado acima, a ideia de uma resolução justa de um conflito requer uma história com um claro ponto inicial — e um claro ponto final. Mas no longo período de tempo do universo de Buda, as histórias não tem um começo claro e — potencialmente — não tem fim. Não há maneira de determinar quem fez o que primeiro, através de todas as nossas vidas, não tem como a última vida permanecer sendo de fato a última. Tudo decai, apenas para se reagrupar, de novo e de novo. Isso significa que justiça não pode ser vista como um fim, pois nesse universo não há fins, além de nibbāna. Você não pode usar justiça como um fim para justificar os meios, pois isso — como tudo nesse universo — não é nada mais do que meios. Harmonia pode ser encontrada apenas tendo certeza de que os meio são claramente bons.

• Terceiro, paras as pessoas concordarem com uma norma de justiça, elas teriam que concordar nas histórias que justificam o uso da força para corrigir os erros. Mas em um universo onde não é possível delinear as fronteiras das histórias, não há história em que todos concordariam. Isso significa que o delinear dessas histórias teriam que ser impostos — um fato que se mantém mesmo que você não aceite as premissas de kamma e renascimento. O resultado é que as histórias, ao invés de nos unir, tende à nos dividir: Pense em todas as guerras religiosas e políticas, as revoluções e contrarrevoluções, que começaram por conta de histórias conflitantes de quem fez o que para quem e porque. Os argumentos sobre quais histórias acreditar podem levar à paixões, conflitos e disputas que, da perspectiva do despertar de Buda, nos mantém presos ao sofrimento em samsāra por muito tempo no futuro.

Essas são algumas das razões pelas quais, depois de ganhar os dois primeiros conhecimentos na noite do despertar, Buda decidiu que o melhor uso daquilo que ele havia aprendido era voltar-se para dentro para encontrar as causas do samsāra em seu próprio coração e mente, e escapar do kamma inteiramente treinando sua mente. Essas também são as razões pelas quais, quando ele ensinou outros a como resolver o problema do sofrimento, ele focou principalmente nas causas internas do sofrimento, e deixou em segundo lugar as causas externas.

ISSO NÃO SIGNIFICA, porém, que não há espaço nos ensinamentos de Buda para mover esforços em prol de soluções para injustiças sociais. Afinal de contas, o próprio Buda em ocasião, descreve as condições para paz e harmonia social, junto com os benefícios resultantes de prestar ajuda aos desafortunados. Todavia, ele sempre classificava seus ensinamentos sociais abaixo do arcabouço maior de ensinamentos da sábia busca pela felicidade. Quando observava que um sábio rei compartilhava sua riqueza para garantir que todo seu povo tivesse o suficiente para se manter, ele encarou não como um caso de justiça, mas como uma sábia forma de generosidade que promove uma sociedade estável.

Se você quer promover um programa de mudança social que seja condizente com os princípios budistas, seria sábio levar em consideração o arcabouço dos ensinamento de Buda para entender o bem-estar social, começando com seus ensinamentos sobre mérito. Em outras palavras, a busca por justiça, para ser condizente com o Dhamma, precisa ser considerada como parte da prática de generosidade, virtude e desenvolvimento de bem-querer universal.

O que isso requer? Para começar, requer que o foco seja primariamente nos meios pelos quais a mudança é almejada. A escolha de um propósito, contanto que você ache inspirador, seria inteiramente livre, mas deve ser alcançado através de meios meritórios.

Isso significa prover as mesmas condições na busca de justiça que Buda proveu na prática de mérito:

1) As pessoas devem ser encorajadas a se juntar na tomada de esforços apenas por vontade própria. Sem demandas, sem tentativa de impor mudança social como dever, e sem tentativa de fazê-las se sentirem culpadas por não se juntarem a causa. Ao invés disso, mudança social deveria ser promovida como uma oportunidade agradável de expressar boas qualidades do coração. Tomando emprestado uma expressão do Cânone, essas qualidades são melhor promovidas quando você mesmo às encorpora, e esclarecendo em como tais práticas conduzirão para os benefícios à longo prazo para qualquer um que as adote também.

2) Esforço para mudança não deve causar dano para você mesmo ou para os outros. "Não causar dano à você mesmo", no contexto da generosidade, significa não sobrecarregar você mesmo, e um princípio similar se aplicaria à não causar danos ao outros: Não os peçam para fazer sacrifícios que os causariam prejuízo. "Não causar dano à você mesmo" no contexto de virtude seria não quebrar os preceitos — e.g., não matar ou mentir em nenhuma circunstância — enquanto que não causar danos ao outros seria não os levar a quebrar os preceitos (AN 4:99). Afinal de contas, um princípio subjacente de kamma é que pessoas são agentes que recebem resultados condizentes com o tipo de ação que performam. Se você tenta convencê-los a quebrarem os preceitos, você está tentando aumentar o sofrimento dessas pessoas futuramente.

3) O bem-querer motivando esses esforços deve ser universal, sem exceções. Nas palavras de Buda, você deve proteger seu bem-querer o tempo todo, disposto a arriscar sua vida por isso, da mesma maneira que uma mãe arriscaria a própria vida pelo seu único filho (Sn 1:8). Isso significa manter bem-querer por todos independente de se eles "mereçam" ou não: bem-querer por aqueles que você vê como culpados tanto quanto por aqueles que você vê como inocentes, e por aqueles que desaprovam seu programa e ficam no seu caminho, não importando o quão violento e injusto se torne a resistência promovida por eles. Para o seu programa incorporar bem-querer universal, você tem que ter certeza que funcione para o benefício à longo prazo mesmo daqueles que inicialmente se opuseram.

HÁ DUAS PRINCIPAIS VANTAGENS ao visualizar o esforço de trazer justiça social sob o arcabouço de mérito. O primeiro é, encorajando generosidade, virtude, e desenvolvimento de bem-querer universal, você está remediando o problema do estado mental interno que levaria à injustiça não importando o quão bem a sociedade possa ser estruturada. Generosidade ajuda a superar a ganância que leva as pessoas à tirar vantagem sob as outras de maneira injusta. Virtude ajuda a prevenir mentiras, roubos e outras ações insensíveis que divide as pessoas. E bem-querer universal ajuda a superar várias formas de tribalismo que estimula favoritismo e outras formas de iniquidade.

Segundo, generosidade, virtude e bem-querer universal são em si mesmo boas ações. Mesmo que você possa se sentir inspirado pela história do despertar de Buda para praticá-las, elas são claramente tão boas que nem precisam de história para justificá-las — e assim elas evitariam a ocorrência do tipo de histórias que serviriam simplesmente para nos dividir.

Em relação às tentativas de mudança social sob o princípio de kamma, também requer aceitar o princípio de que qualquer forma de injustiça que não responde às atividades de mérito deve ser tratada com equanimidade. Afinal de contas, os resultados de algumas ações ruins do passado são tão fortes que nada pode ser feito para pará-las. E se elas pudessem ser aliviadas agora apenas através de ações inábeis — tal como mentir, matar, roubar ou violência — o custo-benefício em termos de consequências à longo prazo não valeria a pena. Qualquer tentativa dessas não seria, na análise de Buda, sabia.

Em áreas como esta, nós temos que retornar para o ponto focal de Buda: as causas do sofrimento interior. E a boa notícia aqui é que não precisamos esperar por uma sociedade perfeita para encontrar felicidade verdadeira. É possível dar um fim ao nosso próprio sofrimento — parar de "samsārear" — não importando o quão ruim é o mundo exterior. E isso não deveria ser visto como uma busca egoísta. Na verdadeira, seria mais egoísta fazer as pessoas se envergonharem de seus desejos de serem livres fazendo com que elas voltem para ajudar você e seus amigos a estabelecer suas ideias de justiça, mas sem um verdadeiro fim à vista. Um final, um estado de justiça estabelecido é uma impossibilidade. Uma felicidade incondicional, acessível à todos independente do kamma passado, não é.

E a estrada para tal felicidade está longe de egoísmo. Requer ações de mérito — generosidade, virtude e bem-querer universal — que sempre dissemina felicidade à longo prazo no mundo: uma felicidade que repara divisões antigas e evita que qualquer outra seja posta em seu lugar. Dessa forma, aqueles que alcançam essa felicidade são como estrelas que são sugadas do espaço e tempo e entram em buracos negros que na verdade são densos com luminosidade: Ao sair, elas liberam ondas de luz deslumbrantes.

See also: Justice vs. Skillfulness, Dhamma talk by Ven. Thanissaro.